O Caeté e as Epistemologias de Paneiro

Convidamos você a mergulhar nas águas da Bacia Hidrográfica do Rio Caeté e nas tramas simbólicas e materiais do paneiro amazônico, para pensar com a gente as epistemologias de confluência que inspiram o trabalho do Caeté.

PANEIRO

Lucas G. Pereira da Silva e Layza T. L. Silva

6/23/20256 min read

Os rios estão no cotidiano da conformação da vida vivida nas Amazônias. Estamos cercados e cercadas por sua influência, seja mediante seu uso direto ou não. É por isso que, de modo geral, não são apenas elementos naturais ou hidrológicos, mas constituem verdadeiros eixos estruturantes do imaginário coletivo. São caminhos, moradas de encantados, fontes de sustento e de narrativas, eles constituem e são constituintes da memória dos povos que eles margeiam. A Bacia Hidrográfica do Rio Caeté está situada no nordeste do estado do Pará, na região da Amazônia Oriental, abrangendo uma área aproximada de 2.195 km² e estendendo-se por 149 km, desde suas nascentes no município de Bonito até sua foz nos municípios de Bragança e Augusto Corrêa, onde deságua na Baía Caeté-Urumajó. O Rio Caeté é formado por uma rede de afluentes e sub-bacias menores, como os rios Curizinho, Cereja e Chumucuí. Nossos familiares nasceram e se criaram em Bragança, especificamente no bairro que leva o nome de Cereja, em referência ao próprio rio e no Perpétuo Socorro, depois de vir dos campos bragantinos. Daquele tempo, as histórias são de banhos no “Cereja”, Pescarias em Ajuruteua, contos da Cobra Grande do Caeté, dentre outras em que os rios eram companheiros. Hoje em dia, ao rememorar esses causos somos levados para um lugar de afeto para com o Rio. É como se ali estivesse criada uma relação de amizade, um nó, entre nós e os rios em nossa volta.

Um Rio que é, simultaneamente, espaço físico e simbólico: “é chão e caminho; é casa e fluxo; é matéria e espírito” (Paes Loureiro, 2015). É, sobretudo, agente nas relações de afeto.

- Paes Loureiro (2015).

As águas doces, salobras e salinas da Bacia compõem uma malha relacional que não é apenas um fenômeno hidrológico, mas também ecológico e cultural, pois marca zonas de confluência entre sistemas naturais e modos de vida. Essa dimensão simbólica se entrelaça à diversidade de modos de vida e de interpretação dos múltiplos territórios da região. O rio é mais que recurso: é eixo organizador de práticas de pesca, agricultura familiar, religiosidade e territorialidade. As populações ribeirinhas — muitas autodenominadas caeteuaras — constroem uma relação de pertencimento com o rio, cuja simbologia atravessa também seus imaginários, como destaca Siqueira (2013) ao falar da “Civilização do Mangue” no Baixo Caeté. Cada grupo que atravessa o rio, o imagina e o constrói de um modo próprio, a partir de sua linguagem e vivência. Mas essas diferenças não se excluem — elas confluem, conforme Nego Bispo (2023), no próprio rio, no Caeté.

De modo muito similar o paneiro — cesto ancestral tecido com fibras da floresta — serpenteiam, bifurcam-se e se reencontram em confluências inesperadas. O tecer de um paneiro é um gesto de entrelaçamento e comunhão. Como nos lembra Carla do Carmo (2023), entre os Tikuna e outros povos amazônicos, tecer paneiro é viver: é entrelaçar existências, saberes e tempos, é fazer do encontro entre fios um modo de formar o mundo. Nas margens da Bacia Hidrográfica do Rio Caeté, esse gesto ganha ainda mais potência. Os paneiros circulam entre comunidades e entre marés, carregando alimentos, saberes, sementes, peixes e memórias. E cada um deles é resultado de conhecimentos múltiplos: da escolha da palha ao trançado, das formas herdadas às inovações aprendidas. O paneiro é, assim, um artefato coletivo, feito de fios e de gente. Como o rio que nasce pequeno e se adensa em confluências até chegar ao mar (e confluir com este também), o paneiro vai se formando por contribuições plurais — das mulheres que trançam, dos homens que coletam fibras, dos mestres que ensinam, das crianças que observam, o paneiro é coletivo. O trançado do paneiro ecoa o próprio trançado das águas. Cada paneiro carrega os gestos da terra de onde veio a fibra, das mãos que a trançaram, da necessidade que o instituiu.

Cada conhecimento construído sob essa lógica é inseparável de seus contextos materiais, históricos e afetivos. Por isso chamamos essa construção colaborativa do conhecimento, como “epistemologias de paneiro”, propondo assim, um espaço epistemológico enraizado na confluência e na co-construção do saber. Não partem da homogeneização dos pontos de vista, mas da potência dos entrelaçamentos, como os fios do cesto. As epistemologias de paneiro nos convidam, portanto, a construir saberes como se constrói um paneiro: juntando fios diferentes, respeitando seus tempos e tensões, produzindo uma rede que serve para carregar, proteger, sustentar. É um saber que não se deseja finalizado, mas sempre em processo; não se quer homogêneo, mas diverso; não se apresenta como totalidade, mas como possibilidade de encontro. Assim como o rio, o conhecimento flui — e, no paneiro, pode ser guardado e compartilhado.

Mas é preciso dizer: nem todo fio se deixa trançar com facilidade.

Há também os nós. Há as fibras que se rompem, os gestos que não se encontram, os atravessamentos de poder que dificultam o entrelaçar. Em certos momentos, o trançado se desfaz antes mesmo de começar, porque os fios não se reconhecem — ou porque há quem insista em que apenas um tipo de fibra vale, apenas uma mão sabe fazer.

O Caeté — enquanto organização — nasce desse gesto de tecer e de confluir, como paneiro de rio. Tecer saberes, pessoas, territórios e futuros. Seu nome remete ao próprio rio Caeté, à paisagem que abriga e ao fluxo que o conecta. Mas, mais profundamente, o Caeté se funda na convicção de que é possível — e necessário — construir o futuro de modo compartilhado, plural e enraizado nos territórios. Assim como o paneiro só existe porque há muitas mãos entrelaçando fibras diversas, o Caeté existe porque diferentes sujeitos decidiram co-construir uma rede onde saberes possam circular, ser guardados, transformados e reencantados. Assim como os rios não correm sem pedras, o saber-partilhado também enfrenta seus obstáculos. Precisa-se, então, reconhecer e lidar com as assimetrias que atravessam os encontros entre mundos. Nem toda escuta é acolhimento; nem toda fala é bem-vinda; nem todo convite é realmente aberto.

Quem decide o que cabe no paneiro? Quem escolhe os fios? Quem colhe a palha?
É preciso perguntar: quais saberes foram deixados de fora? Quais silêncios se impõem mesmo no discurso da coautoria?

Assumir as epistemologias de paneiro como fundamento ético, político e metodológico significa recusar hierarquias epistêmicas e afirmar a potência da confluência. Significa reconhecer o valor das práticas locais, das narrativas populares, das experiências vividas — não como fontes brutas a serem interpretadas pela ciência, mas como modos legítimos e sofisticados de produzir mundo. A confluência, por mais desejada que seja, não dissolve as diferenças — e não deve. Porque é no atrito entre as margens, no remoinho, que novas formas podem emergir. Reconhecer os limites do entrelaçamento não é negar o paneiro, mas complexificá-lo: há beleza também naquilo que escapa, no que não se encaixa, no que resiste a ser trançado. E talvez seja esse o maior compromisso ético das epistemologias de paneiro: não se deixar encerrar, não desejar uma trama perfeita, mas sim um tecer aberto, inacabado, poroso. Um saber que se sabe parcial, situado e disposto a ser desfiado e refeito.

Ao entender isso, o Caeté é um convite à coautoria: entre academia e comunidades, entre floresta e cidade, entre as águas e a terra Firme, entre nós e os outros. E mais ainda: Entendo que essas dualidades estão longe de ser binárias, mas que de sua existência se re-des-fazem muitas outras formas. Que o Caeté, como rio e como rede, continue crescendo pelas margens, como um paneiro que se amplia e se adensa com cada novo fio trançado em comum.

Bem vindos ao Caeté! E ao nosso tecer epistemológico.

Referencias:

DO CARMO, Carla Silva. Tecendo um paneiro: o encontro da pedagogia Waldorf com a floresta amazônica. Revista Jataí, v. 6, p. 77-90, 2024.
DOS SANTOS, Antônio Bispo. A terra dá, a terra quer. Ubu Editora, 2023.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Editora cultural brasil, 2019.
SIQUEIRA, Deis Elucy. Civilização do mangue: biodiversidade e populações tradicionais. Horizonte: revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religiao, v. 11, n. 30, p. 15, 2013.